sábado, março 31, 2007

Reciprocidade vizinha

Conheci, pela vida, um garoto inevitavelmente apaixonante. Seu olhar maroto, seu semblante tranquilo, sua gargalhada contagiante compunham seu arsenal fantasmagórico. Seu passo malemolente, sua ginga, não negam sua origem: brasileiro convicto.

Brasileiro por vários motivos. Por não desistir nunca principalmente. Atuante sonhador, trabalha para o povo sem falcatruas da politicagem jurídica. Persistente em seus ideais e crenças, criou um mundo só seu, sem alienar-se nele. Engajado, em seu “repertório incansável”, publica textos sociais de cunho crítico e reformador. Almeja melhorias, apesar da realidade calejar diariamente seu peito.

Brasileiro também na malícia, na sua presença Donjuaniana. Boêmio do vinho, das noites de lua cheia e de uma boa música. Com seu olhar arrebatador, faz juras em prol do amor romântico. Baila personalissimamente, cativando a dança nos salões mais vazios. Enamora intensamente até os sentimentos mais fugazes. Brada poesias, escreve cartas de amor mesmo que o condenem como piegas.

Universalmente amigo, compreende as dúvidas mais intrincadas, os corações mais doloridos, os pensamentos mais elaborados. Enaltece valores por muitos perdidos, dribla problemas sorridentemente e supera reflexões decimononimamente improváveis. Filosofa a vida, tornando-a poesia e música do dia-a-dia. Sua presença torna-se alimento diário e reciprocamente distribuído. Sem sufocar, nem faltar.

Parece que falo dos grandes homens do passado, mas um como aqueles ainda existe, mora bem ao meu lado.


Monique Mendes

quarta-feira, março 28, 2007

Desabafo digital

Desculpem as delongas do meu refletir
Idéias não me faltam, mas é tardio o meu agir.
Ora penso sobre o cérebro, ora sobre o comprimido,
Ora sobre como devo entender tudo isso.
Ora leio textos afins, ora quero ler um só pra mim.
Ora quero escrevê-lo, ora quero escondê-lo,
Ora quero remetê-lo para alguém bem longim.
Pois talvez na distância entendam o que se passa em mim,
Já que os próximos apenas julgam o que não é bem assim.
E por imcompreendida em meus atos, quebro-me em cacos,
Reconstruindo-me perdidamente em parágrafos.
Clico no mouse ao meu lado
Na esperança de encontrar, na minha luta, um aliado.

Monique Mendes

segunda-feira, março 12, 2007

Inexorável fim


Triste ver letras em jazigos.
Estranho observar o amarelar da pele, o enrijecer dos músculos, o escapar da vida.
Corrosivo sentir a dor no peito, guardar pertences com um perfume tão característico.
Amargo acreditar que sua existência tornou-se memórias abstratas.
Sufocante soterrar semblante tão íntimo, tão repleto de história e de sabedoria.
Funesto compreender o dia, a hora, o porquê.
Impossível desistir das lágrimas.
Confuso decidir qual a atitude seguinte.
Entretanto, inevitável degustar os fatos, mesmo que seja azedo o sabor do fim.
Monique Mendes


* honras póstumas ao amigo J.N.M.P.

quinta-feira, março 08, 2007

Bula capsular


Alimento cultivado em laboratório, sobremesa insosso-terapêutica, injeção diária de humor falsificado. Anestésico da dor, do amor, do viver realisticamente. Ampolas de bem-estar que, quando deglutidas, abafam a angústia, alucinam os pensamentos, sufocam o suicídio.

Companheiro da solidão, utilize-o para adormecer, embaralhar reações, personificar amigos íntimos. Manipule-o a seu gosto e necessidade, pois as dosagens antigas não trarão mais a reação desejada. Para resultados permanentes, nutra suas artérias de feijão-com-arroz científico. Taquicardize seus batimentos, eletrize com alta voltagem suas sinapses cerebrais.

Com pouco tempo, terás o efeito perpétuo de sua escolha: serás produto interno bruto da natureza morta, que, sem o uso bactericida da penicilina, só restará osso. Um esqueleto branquelo, sorridente e fosco.

Monique Mendes

segunda-feira, março 05, 2007

Um amor psico-carnavalesco

Perdido em sua embriaguez, avistou-a no meio da multidão. Encantou-se com sua beleza, com seu olhar doce, com sua magreza de carne e obesidade de espírito. Apesar de desconhecida, sua presença aquietou sua alma e incendiou sua libido. Escolheu-a para ser seu par ao avistar sua silhueta entre confetes e serpentinas.

Entre os olhares, um beijo selou. Contou histórias, entusiasmou sorrisos, apresentou amigos, mas esqueceu de apresentar-se. Falou seu nome, mas escondeu nas entranhas do psiquismo as letras mórbidas do seu ser.

Na presença da moça, alguns indícios de sua doença foram apresentados por meio de palavras, de gestos. Mas o ardor da paixão não a deixou perceber. Continuou alimentando sentimentos, descrevendo sensações, brindando por tê-la encontrado.

Entretanto, sua natureza puramente maquiavélica caiu de pára-quedas. Frieza e apatia deixaram as palavras doces de lado, ferindo o coração alheio. Nem lágrimas de engano e decepção pulverizaram seu peito gélido-catatúmbico.

Implodiu a esperança, a felicidade e o prazer construídos por dias. Tornou irreal a realidade do que haviam vivido. Não ocorreram brigas, nem esclarecimentos. Do nada, impetuosamente, bravejou o fim de algo que há segundos o fazia sorrir. E, tomado pela impulsividade da patologia que o consumia, deixou falecer o amor.

Para a garota, com o adeus, apenas um sofrimento que o tempo iria sarar. Para ele, mais uma frustração que sua insanidade, cumulativamente, perpetuava para sua infelicidade.


Monique Mendes